A “SERENATA SINTÉTICA” DE “NA RUA, NA LUA, NA SUA”, DE ÉRIKA BATISTA - kairós extra #23
Nota: Esse texto foi publicado anteriormente na Revista Sepé, que encerrou suas atividades há pouco tempo. Para que o texto (e a recomendação) não se perca, republico-o aqui.
A “SERENATA SINTÉTICA” DE “NA RUA, NA LUA, NA SUA”, DE ÉRIKA BATISTA.
Escrever poesia lírica atualmente é muito, muito difícil. Digo isso isso como alguém que se arrisca a isso. Primeiro, porque há séculos de poesia lírica atrás de nós, de Safo a Vinícius de Moraes, passando pelo Cânticos dos Cânticos, Camões (claro), os romantismos e tudo que veio depois deles, entre tantos outros mais. O sarrafo é muito alto.
Além disso, os tempos não são “líricos”: estamos na “era do político”, conforme Julien Benda, e a paixão política a tudo contamina, transformando o estético e, especificamente, o poético, senão em ferramenta da política, em mera expressão do político. Não que a política seja completamente incompatível com o lirismo, mas não resta dúvida de que nosso tempo, em nome do político, sacrificou o poético.
Por fim, a canção ocupa – e muito bem – o espaço do lírico na nossa cultura. A música chega onde o livro não chega e, diria eu, sem trocadilhos, toca onde o livro não toca. Mesmo com a internet, os poemas carecem do poder de difusão e impacto da canção – o que, talvez os aedos e trovadores já sabiam. No fim do dia, ninguém vai viralizar no TikTok recitando versos. Desconfio que nem com dancinha.
Enfim, o imaginário contemporâneo não tem muito espaço para o lírico, muito menos para poemas líricos. Pode até ter espaço para o lúdico, mas, para o lírico, não. Aliás, não raramente confunde a mera brincadeira com o estético, tornando a arte e a poesia infantis. Pendulamos entre a chatice grave do holismo político e a leviandade do que chamamos hoje de estético. Esse é o cenário, e é difícil se destacar nele.
É por isso que Na rua, na lua, na sua (Editora Patuá), de Érika Batista me chamou tanto a atenção. Conheci a poesia de Batista em revistas, poemas de seu primeiro livro, Estado da Corda Sol Quando se Exagera na Tensão (Ipêamarelo), que ainda não li na íntegra, mas cuja amostra me despertou interesse. Aliás, Batista já se mostra aí excelente em títulos que, em si, são versos. Eu, como um poeta que pena com os nomes dos livros, só posso ter inveja.
Na rua, na Lua, na Sua se divide em 3 seções, já adiantadas no genial – e lírico – título do livro, em si mesmo um poema que evoca a Serenata Sintética de Cassiano Ricardo: Rua torta./ Lua morta./ Tua porta. Serenata, porque lírica, sensível, bela; sintética, porque o rigor formal trabalha o sentimento e lhe dá a forma adequada, a medida certa, a linguagem condensada de que Pound fala.
Serenata Sintética não seria uma forma imprecisa de se referir à poesia de Érika Batista, ao menos não na maior parte do seu belo livro. Seus poemas, em geral curtos, mesclam sensibilidade lírica, rigor formal e algumas referências literárias, dando expressão poética à sua visão de mundo, que pendula entre o encantado e o desencantado.
Na primeira, Na Rua (ou Sintomas do Agora), a poeta reúne poemas de cunho social, que falam de questões atuais como o nosso comportamento na pandemia (Valores), a cultura da produtividade (Under Pressure, Fracasso) e a intelectualidade nacional (Intelligentsia), sem perder o lirismo. O olhar é crítico, não porque é insensível, mas porque é – muito - sensível.
Under Pressure
O dia acabou
E ainda não fiz
O que devia fazer em um ano.
Suspiro e o ar
Não fecha o percurso:
Esbarra em amargura.
Mesmo que eu me diga
Que meta é engano
E este milênio é loucura.
Talvez pela aridez da temática e a sua impertinência lírica, é a menor das seções – mas nem por isso a menos lírica. Érika Batista não sacrifica o poético em nome do político, nem o contrário, e daí, dessa tensão, vem a força lírica.
A segunda seção, Na Lua (ou Cogiro Ergo Sum), é a filosofia livre da autora, que, com a cabeça “na lua”, apresenta suas reflexões sobre tudo e nada de forma lírica. É dessa parte do livro pequenas joias poéticas como Aqui e Agora, Legado II e Concretude, em que, fugindo de qualquer simbolismo, psiquismo ou coisa assim (sem negá-lo de todo), a poeta nos apresenta a beleza da vida mesma, a sua poesia.
Concretude
Que todo retrato é metáfora
- se pensa – pra algum pensamento.
Às vezes não.
É só a grandeza do mar,
É só frescor do vento.
Estado de graça é estar
Inteiro em cada momento.
Por fim, a poesia amorosa de Na sua (ou Quem fez minhas malas) é lírica por definição. É a maior seção, com mais poemas maiores, e, como toda carta de amor é ridícula, resvala na pieguice em alguns momentos. Na maior parte, contudo, a eu-lírico que expressou sua cosmovisão em Na rua e Na lua forja pequenas peças de potência lírico-amorosa, como em Leve, a diretíssima Idiotice, Repercussões e Dentes-de-Leão. Nesses dois últimos poemas, Batista mostra porque não negara de todo o simbolismo, trabalhando metáforas e comparações com destreza e beleza.
Dentes-de-leão
meu castelo é feito
de dentes-de-leão
ba(s)ta uma brisa –
e todos voarão
Não sei se é correto – criticamente correto e/ou politicamente correto – falar em poesia feminina. O fato é que a melhor poesia lírica brasileira atual é escrita por mulheres como Mar Becker, Ana Martins Marques e Ana Elisa Ribeiro. Se Érika Batista já não faz parte desse clube de elite, é, no mínimo, uma forte candidata a entrar nele. Suas eu-líricas parecem conversar. Com as Anas, aliás, há fortes diálogos temáticos e formais, compartilhando uma profunda sensibilidade crítica (crítica, porque sensível) que alimenta suas visões e vivências de mundo, o que impede de o lirismo descambar para o mero lúdico brincalhão. As rimas, os jogos de palavras e as figuras de linguagem (não necessariamente raras e inovadoras, mas nunca banais ou vulgares) são usados como recursos poéticos, não como pura brincadeira verbal. Uma poesia ao mesmo tempo acessível e rigorosa, técnica e lírica.
Bela crítica. Deu vontade de comprar o livro da Érika.